Nos últimos tempos tenho encontrado muitas pessoas dispostas a largar tudo, mudar em busca do necessário, qualidade de vida e consequentemente mais felicidade. O mundo cada vez mais repleto de incertezas, rachado de opiniões e desavenças de todo tipo tem feito com que muita gente procure um lugar melhor onde se encaixar e tornar tudo mais simples e desapegado. Somam-se a isso os inúmeros efeitos da pandemia, que vão muito além da Covid em si, aumentando o buraco da angústia, que está provocando muitas reinvenções humanas. Mas antes desse movimento atual de necessidade de mudanças, não são poucos os que já largaram tudo o que faziam para encontrar um verdadeiro propósito de vida. A história do convidado da coluna dessa semana seria quase impossível de acontecer não fosse uma determinação avassaladora para dar um basta em tudo e recomeçar sem medo, na procura do lugar certo para se encaixar. Yuli Mello Dugaich, nascido em São Paulo, engenheiro civil e sanitarista, trabalhou durante 20 anos em empresas do Brasil e do exterior. Seu último emprego foi numa multinacional do Peru, atendendo toda a América Latina. Mas o tempo todo guardava a vontade de executar um projeto autossustentável, que pudesse parar de viajar e ficar mais perto da família. Ele brinca dizendo que teria de parar em casa porque um dia certamente um dos filhos largaria a seguinte frase: “mãe aquele homem voltou”. Yuli é casado com com a dentista Adriana e tem um casal de filhos adolescentes, Vinicius e Bianca, uma relação em família que desde sempre teve a sustentabilidade presente na forma de ver o mundo. E nesse modo de pensar, o casal resolveu criar um projeto sustentável e integrado para ser desenvolvido em Florianópolis, com base em três pilares básicos: social, ambiental e econômico. Tudo pensando, há quatro anos e meio vieram para Florianópolis com esse plano, porque a hipótese de voltar para São Paulo já estava descartada. Aqui, escolheram uma área no Rio Vermelho, com jeito de sítio, propriedade rural, onde a ideia era produzir, beneficiar e vender produtos agrícolas. Tocaram em frente as ideias e a produção dos alimentos naturais e logo abriram uma loja e um restaurante, mas com uma proposta diferente, ser um lugar que despertasse no público aquilo que Yuli considera fundamental na gastronomia, a memória afetiva e histórica. “Tudo o que a gente viesse a fazer teria que ter legado afetivo, porque antigamente era assim, tudo que nossos bisavós e avós preparavam tinha como ingrediente fundamental o afeto, mesa farta e carinho.”, diz Yuli. Essa era a base de todo o projeto, voltar às origens da produção de alimentos sustentáveis e saudáveis. Yuli é um grande defensor do estímulo ao consumo de forma consciente, que as pessoas entendam e se integrem ao processo completo de produção em toda a cadeia produtiva. De acordo com ele, se a gente tem consciência na escolha e perpetua o consumo equilibrado, faz girar a roda das boas atitudes alimentares, impedindo as ações de quem só pensa no lucro, o que vale para todas as formas de negócios. Ele defende ainda a ideia de consumo racional como forma de salvar o Planeta, acumulando e descartando menos, buscando o equilíbrio para que os projetos sustentáveis sobrevivam, seja em qualquer área. “Quando a gente adquire essa capacidade de raciocinar não tem marcha atrás, a energia toca a mudança. E faço uma comparação com as pessoas que decidem mudar para Floripa, por exemplo. Quando elas chegam aqui, a maioria já vem mudada e não perde tempo para iniciar um ciclo diferente e isso vale para todo tipo de reinvenção profissional ou pessoal “, ensina Yuli.
O começo em Floripa com a Fazendinha (Foto: Divulgação)
A CHARCUTARIA
Para surpresa do engenheiro que pegou o caminho da gastronomia, a loja e o restaurante que serviram de base para o novo ciclo de vida não foram suficientes para seguir nos planos, porque o consumidor foi quem acabou dando o sinal sobre o caminho a ser seguido. Entre tantos produtos, estavam os vindos da charcutaria, que ganharam a preferência do consumidor e numa correção de rota do projeto nasceu o charcuteiro, hoje um mestre da charcutaria (do francês, charcuterie, que junta duas palavras que traduzidas para o português significam carne cozida, a arte de conservar todo tipo de carne).
Yuri fazia os produtos mais para os filhos porque não queria que eles comessem alimentos com aditivos e começou a estudar e se especializar, pelo prazer e para atender a necessidade dos seus clientes, sempre atento ao que poderia evoluir nas técnicas sobre o uso de água e sal na conservação de carnes. E o hobby virou profissão e segundo Yuri com a melhor consultoria que ele poderia ter, o gosto dos consumidores, que fez os produtos da charcutaria subirem, até se tornarem os principais do seu negócio.
O engenheiro que virou charcuteiro (Foto: Divulgação)
E lá se vão 10 anos de obstinação e estudos para evoluir e criar produtos que são iguarias da culinária, que saltam aos olhos pela estética e pelos inúmeros sabores e aromas, numa sofisticação que tecnicamente pode até ser simples, mas que exige os cuidados de um charcuteiro, que vai assegurar a escolha das carnes, o uso correto do sal, analisar todo o processo de criação dos animais, abate, conservação e produção, ou seja, toda a cadeia produtiva para garantir produtos de qualidade. Yuli conta que algumas técnicas são muito antigas e sugiram do autoconhecimento de quem precisava manter as carnes boas para consumo em diferentes épocas do ano, em muitos casos uma questão de sobrevivência e forma de matar a fome em tempos difíceis centenas de anos atrás. Muitos produtos famosos da Europa são resultado do contínuo aprendizado e da evolução, conta Yuli, ele mesmo um permanente observador e criador de inovações na charcutaria. A base é sempre a água e o sal, mas a carne varia, passando pela carne de gado, ovelhas, aves e peixes, num universo de origens e criações sem limites.
Yuli é proprietário da Duca Charcutaria, com produção e distribuição de mais de 50 produtos em lojas, restaurantes e eventos, mas tudo acontece na indústria que fica na Duca Fazendinha, no Rio Vermelho, o lugar onde técnicas são estudadas, são feitos os aperfeiçoamentos e a criação de novos produtos. Na prateleira dele estão produtos como presuntos, salames, copas, peito de pato curado, bresaola, presuntos de peixes e carpaccios, entre outras criações.
A Charcutaria e os produtos feitos por Yuli e sua equipe de trabalho (Fotos: Divulgação)
Uma das maiores preocupações de Yuli é manter a vigilância constante para garantir a qualidade da sua produção. Ele fechou uma parceria com a Universidade Federal do Paraná para garantir a procedência de carnes e qualidade final do produto, por exemplo.
Segundo ele, o ciclo da sustentabilidade tem de ser completo, desde onde os animais nascem, como se alimentam, o abate e as demais frentes do processo integrado para assegurar a proteção do meio ambiente como um todo.
Ele conta um aprendizado sobre a charcutaria e a história. Durante uma visita que fez a um antigo charcuteiro na Espanha, um senhor daqueles com cara de bravo, fez muitas perguntas e todas respondidas. E no final, aquela que praticamente todo bom curioso faria: qual o segredo da charcutaria? e o senhorzinho respondeu “segredo, não tem segredo, é díficil apenas nos primeiros duzentos anos”.
Sobre o perfil de consumo, Yuli diz que é uma questão de paladar, de quem gosta de produtos artesanais e sem aditivos químicos, pessoas dispostas ao consumo de comidas saborosas e que não prejudiquem a saúde. A questão é a qualidade, os produtos da charcutaria são complexos e podem levar mais de um ano para estarem no ponto de consumo, são iguarias, que separadamente ou adicionados a uma receita, podem trazer grandes experiências e harmonizadas com todo tipo de bebida, acrescenta o charcuteiro. Yuli é um dos poucos charcuteiros do Brasil que não usam conservantes artificiais, sua produção é acompanhada pelo SIM, que é o órgão de inspeção de saúde sanitária do município e sua marca tem um selo de qualidade que permite a venda dos produtos em todo o país.
Segurança alimentar: inspeção e selo de garantia de qualidade
Trabalho árduo, cheio de exigências e talento, além de mestre charcuteiro, Yuli é um profissional dedicado a deixar um legado, valorizando o trabalho de produção. Ele quer desenvolver ainda mais a responsabilidade com toda a cadeia produtiva, de ponta a ponta, garantindo na charcutaria a filosofia da sustentabilidade.
Sobre viver seu novo ciclo de vida em Floripa, ele diz: “Estou extremamente feliz aqui, moro num lugar que minha família gosta muito, fomos recebidos com carinho e somos bem tratados. Minha raiz está dentro de um vaso, mas o vaso está furado e estou encravando minhas raízes em Floripa”.
Até a próxima semana!
@anselmoprada