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Meu tipo inesquecível – II

Meu tipo inesquecível - II

Encontros e desencontros

Contei para vocês noutro domingo sobre a seção Meu Tipo Inesquecível, da revista Seleções Reader´s Digest, muito popular nos anos 60/70 (aqui). Era a introdução para falar sobre um dos meus tipos inesquecíveis, Seu Silvio Santos, motorista de táxi. 

Hoje lembrei de outra figura marcante, embora tenha passado pela minha vida brevemente. Um ano a.p. (antes da pandemia) meu marido e eu viajamos para Montevideo. Escolhi pela internet um hotel que já fora um antigo salão de baile e, agora reformado, mantinha o charme de ser mencionado em livro de Julio Cortázar. O texto do grande escritor argentino está reproduzido numa das paredes do Cervantes.

Bueno, o hotel fica na Ciudad Vieja e, como não íamos à capital uruguaia havia quase vinte anos, a primeira impressão do lugar foi péssima. Tudo ao redor parecia em ruínas. O taxista que nos levou do aeroporto, muito diferente do querido Seu Sílvio, parou no meio da rua e jogou nossas malas na calçada. Estava furioso por causa do trânsito.

Na chegada traumática vimos um homem de bengala, barba por fazer, fumando na porta do hotel. Ele deu buenas tardes e achei que fosse nos pedir alguma coisa. Era só o que faltava!

No dia seguinte, quando saímos para passear, lá estava o homem de novo, envolto numa nuvem de fumaça na porta do hotel. No dia seguinte a mesma coisa. Na passada, ele nos perguntou em espanhol se íamos dar uma volta, então paramos para conversar. E charlamos, charlamos, charlamos um pouco sobre tudo, mas principalmente sobre os nossos países e os lugares não turísticos que deveríamos conhecer no Uruguai.

Ele contou que o hotel não permitia fumar, daí vinha para rua. Estava hospedado ali por ser nas proximidades da retrospectiva de seu trabalho como fotógrafo. Ficamos logo interessados em ir até à exposição. Ele tinha dificuldades para caminhar, daí a bengala, mas nos explicou como chegar lá.

 

Muchas vidas

A primeira boa surpresa foi descobrir o CdF -Centro de Fotografia de Montevideo, espaçoso e cheio de projetos ligados a uma arte normalmente pouco valorizada. Depois, começamos a percorrer os dois andares onde estavam expostas as fotos do nosso novo amigo, Jorge Vidart.

Foi um impacto. Seu trabalho não era belo no sentido comum da palavra. Registrava em preto e branco as pessoas invisíveis- e parecia muito íntimo delas- e os seres perdidos em las calles da cidade grande. A curadoria nos informava que o fotojornalista fora preso de 1976 a 1981 no Penal de Libertad, o lugar de nome irônico para onde o regime militar mandava os presos políticos na ditadura. Vidart, conhecido no meio jornalístico como “Bocha”, cobrira também a revolução na Nicarágua.

No dia seguinte, procuramos por ele para falar sobre a emoção que suas fotos nos causaram. Ele havia deixado o hotel naquela manhã. De volta ao Brasil, procurei um contato para escrever e sugerir uma possível exposição aqui. Encaminhei ao Centro de Fotografia para ver se chegava a ele, mas não nunca recebi resposta. Tinha certeza, porém, que um dia nos reencontraríamos.

Poucos meses depois, lendo jornais uruguaios, vejo a notícia: falleció Jorge Vidart, fantástico fotógrafo de muchas vidas.

Nosso reencontro foi adiado.

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Um olhar analógico e íntimo

Nesta edição, o microconto cede espaço para a fotografia de Jorge Vidart, cujas imagens também contam histórias.

Mais sobre o autor e a obra, aqui.

Os colunistas são responsáveis por seu conteúdo e o texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal Making of.

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