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O legado de Bosch, a síndrome de Estocolmo e o cinema indiano

Titus Welliver em " Bosch: Legacy"/divulgação Prime

O legado de Bosch, a síndrome de Estocolmo e o cinema indiano

A programação dos streamings anda bem fraca. Zapeando, sem muita esperança, atrás de algo interessante descobri o spin-off de “Bosch”,  uma de  minhas séries policiais favoritas. Pensa na alegria desta colunista! A temporada ainda não está completa na Prime Vídeo, mas já deu para maratonar os quatro episódios disponíveis. A partir de agora, será apenas um por semana, num total de dez.

Baseada na coleção de livros de mistério de Michael Connelly, a série acompanha os casos de Harry Bosch, um veterano de guerra e detetive de homicídios do Departamento de Polícia de Los Angeles. Gosto do personagem porque sai do clichê “detetive amargurado, alcoólatra e sujo”. Harry é melancólico, mas ético, vive numa bela casa conquistada com os direitos autorais de um filme, adora jazz e tem uma filha encantadora. As histórias são bem construídas e os personagens secundários também trazem histórias interessantes. O ator Titus Welliver se encontrou tanto no papel nas sete temporadas que é difícil dissociá-lo do personagem.

O recém chegado spin-off  “Bosch:Legacy” é baseado no livro “O lado errado do adeus”, de Michael Connely.  Agora, aposentado da polícia, Harry trabalha como detetive particular e seu primeiro grande caso é encontrar o filho desconhecido de um milionário à beira da morte. Ao mesmo tempo, ele tenta colocar na prisão o empresário que atirou na advogada Honey Chandler, vivida por Mimi Rogers, sua antiga adversária e agora aliada. Maddie, a amada filha de Bosch, seguiu os passos do pai e também virou policial, cometendo vários erros como novata. Enquanto isso, o pai acaba se defrontando com a terrível máfia russa. Ah, para tristeza do detetive e também dos fãs, Bosch precisa deixar a casa envidraçada com vista para as montanhas de Hollywood, depois de um tremor de terra. Ele se muda para o escritório, carregando Coltrane, seu cão, e os discos de jazz, claro.

Bem-vindo de volta, Harry Bosch!

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Outras séries em destaque

Clark – 06 episódios – 2022 – Netflix

Mais um drama biográfico, mostrando a trajetória de um notório criminoso. Desta vez, trata-se do sueco Clark Olofsson que iniciou sua carreira criminosa na década de 1960 e se tornou uma das personalidades mais controversas da história sueca contemporânea. Condenado por várias acusações de tráfico de drogas, tentativa de homicídio, assalto, roubo e dezenas de assaltos a bancos, Olofsson passou mais da metade da vida atrás das grades. Durante um assalto a banco fracassado em Estocolmo, na década de 1970, ele deu origem à expressão “Síndrome de Estocolmo” – quando as vítimas têm simpatia pelo próprio algoz – tornando-se uma celebridade e dividindo opiniões entre os suecos. A minissérie também entrega um personagem carismático, com situações divertidas. (Veja o trailer)

O protagonista é interpretado por Bill Skarsgard, que vem de uma família de astros: o pai, Stellan Skarsgard, e os irmãos Alexander, Gustaf e Valter, todos atores.

 

Agência – 1ª temporada – 2022 – Prime Vídeo

A produção francesa “ Dix pour Cent” ganhou o Emmy de série internacional de comédia, contando a rotina tumultuada de uma agência de talentos em Paris. Ela tem a participação luxuosa de Juliete Binoche e de Isabelle Huppert, duas das maiores estrelas do cinema francês, no papel delas mesmas. As quatro temporadas estão disponíveis na Netflix.

O sucesso de “Dix pour cent” foi tanto que ganhou remakes no Canadá e na Índia. Agora, chegou a versão britânica, “Agência”, que não faz feio. O elenco é ótimo e traz nomes como Helena Boham Carter, no próprio papel. É um bom entretenimento.

Reprodução/Divulgação

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Filmes

O soldado que não existiu – direção: John Madden – 2022 

O filme é baseado em fatos. A trama: em meio à Segunda Guerra Mundial, Ewen Montagu, interpretado pelo ótimo Colin Firth, é um juiz, espião e oficial da inteligência naval da Inglaterra que planejou e executou a operação Mincemeat. Ele e outro oficial planejaram quebrar o controle mortal de Hitler sobre a Europa, fazendo uso de um plano criativo e ousado. Na esperança de mudar o curso da guerra e salvar milhares de vidas, eles utilizaram um cadáver e documentos falsos para enganar as tropas alemãs.

Reprodução/Divulgação

 

Farinelli – direção: Gérard Corbiau – 1994 – Cine Belas Artes à la carte

Esta produção franco-italiana-belga-britânica  ganhou o Globo de Ouro e representou a Bélgica no Oscar de 1995. Perdeu a estatueta para o russo “O sol enganador”, mas a história do cantor de ópera castrato, Carlo Broschi, fez mais sucesso que o vencedor. Farinelli, como era conhecido no meio artístico, conquistou o público europeu do século 18. Para preservar sua voz, ele foi castrado na infância – um método usual na época, para que os homens pudessem tem o mesmo alcance vocal feminino – tornando-se um famoso cantor de ópera, coberto de ouro por príncipes e venerado pelo público. No filme, seu timbre foi conseguido juntando uma voz feminina e uma masculina.

Reprodução/Divulgação

 

Estados Unidos VS Billie Holiday – direção: Lee Daniels – 2021 – HBO

Foi o cinema quem me apresentou a uma de minhas cantoras favoritas, quando vi sua biografia em “O ocaso de uma estrela”, de 1972. Agora, este novo filme traz um recorte da trágica vida de Billie. No auge da carreira, ela se tornou alvo do Departamento Federal de Narcóticos em uma operação secreta liderada por um agente federal com tivera um caso no passado. Vivendo em um país racista e misógeno, a cantora – viciada em heroína- foi perseguida e presa várias vezes até sua morte precoce. A atriz, Andra Day recebeu o Globo de Ouro 2021, na categoria de “Melhor Atriz em Filme Dramático” no papel de Billie. (Veja o trailer)

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Especial

DOIS OLHARES SOBRE A ÍNDIA QUEER                                   

A Índia tradicional, de tantas religiões e costumes, também enxergou sempre a homossexualidade por esse prisma multicolorido de abordagens – da aceitação à indiferença e da indiferença à violência contra o diferente –, mas a criminalização das práticas homossexuais veio apenas com o colonialismo britânico – como diz o médico ao personagem “Maurice”, do romance do escritor inglês E. M. Forster, “a Inglaterra nunca aceitou bem a natureza humana”. Apenas em 2018, a Suprema Corte Indiana derrubou a lei que estipulava penas de prisão de um a dez anos para pessoas flagradas em atos homossexuais consensuais. Tal vitória não apenas abriu as portas para que outras conquistas da comunidade LGBTQIA+ fossem trazidas ao debate público, mas que isso começasse a se espelhar na imensa produção audiovisual daquele país.

Duas produções recentes, disponíveis na Netflix, mostram os novos rumos que o cinema indiano tem tomado para trazer à luz esses novos tempos. Um deles é a comédia dramática romântica “Badhaai Do: Casamento por Conveniência” e o outro é o drama romântico “Azul Cobalto”. Apresentando dois momentos distintos de um mesmo país, ambos os filmes são uma ótima oportunidade para o espectador estrangeiro perceber a realidade do país pelas entrelinhas de cada uma dessas histórias.

O primeiro, estrelado por Rajkummar Rao e Bhumi Pednekar, retrata um casamento de conveniência contraído entre um policial e uma professora de educação física. O tema do casamento arranjado já foi bastante explorado no cinema indiano, já que ainda é forte no país a cultura do casamento contratado entre famílias ou com a ajuda de casamenteiros.

Em “Badhaai Do” (2022), no entanto, trata-se de um tema novo – o “lavender marriage” ou casamento feito entre pessoas de orientação sexual não-heteronormativa, digamos assim, com o intuito de proteger os cônjuges do escândalo e permitir-lhes viver sem a pressão da sociedade – tanto contra sua orientação sexual quanto à necessidade de se casarem. Shardul, o policial vivido por Rajkummar Rao – um rosto que os expectadores mais atentos reconhecerão como o do jovem patrão opressor de “O Tigre Branco” (também disponível na Netflix) – descobre que a professora vivida por Bhumi Pednekar é lésbica e propõe-lhe, mesmo sem conhecê-la, um arranjo que será conveniente aos dois para calarem de vez as lamúrias familiares. O casamento arranjado vai mostrar-se mais difícil do que se poderia esperar, mas o final foge do clichê dos opostos que se atraem. A vida dos dois, sim, será modificada, mas dentro desse olhar esperançoso que a nova Índia lhes apresenta – e contar mais que isso seria estragar os pequenos prazeres de uma comédia tão rica em referências culturais e novidades para o espectador brasileiro. Mas é uma comédia ousada, que não esconde por trás de metáforas o amor entre iguais e discute temas como visibilidade e até adoção de crianças.

Reprodução/Divulgação

“Azul Cobalto” (2021) vai por um caminho bem diverso. É um drama romântico adaptado de um romance homônimo de Sachin Kundalkar, também roteirista e diretor do longa-metragem. O filme, que tem um apuro visual cativante, situa a ação em meados dos anos 1990 – em uma das cenas mais importantes, coloca uma personagem em fuga diante de um muro repleto de cartazes de “Fire” (“Fogo e Desejo”, de 1996, filme icônico do cinema indiano, de Deepa Mehta, o primeiro a retratar uma relação homossexual entre mulheres). Após a morte dos avós autoritários, um aspirante a escritor, Tanay Dixit, sonha em herdar o quarto isolado que eles ocupavam, mas vê seu sonho frustrado ao saber que a mãe irá alugar o cômodo para um viajante. A partir daí, o filme – estrelado pelo excelente trios de jovens atores Prateik Babbar, Neelay Mehendale e Ajali Sivaraman –, mostra o envolvimento sereno entre Tanay e o novo morador, um artista plástico cuja cor preferida dá nome ao filme. Tanay, que não descobriu ainda o amor, apaixona-se pelo inquilino, enquanto é cortejado discretamente pelo professor de cinema – com quem divide sua paixão por E. M. Forster –, em um tempo no qual a homossexualidade ainda era um crime punível com prisão. A sinopse da Netflix dá um tremendo spoiler sobre o triângulo amoroso que surgirá na história, infelizmente – na construção do filme, percebe-se que não era a intenção do diretor que tudo ficasse às claras desde o início… Mas nada se perde com esse lapso da plataforma de streaming: a obra passa belamente por temas como a descoberta do amor, a solidão, as limitações das mulheres e o ostracismo dos homossexuais em uma sociedade que ainda condena essa prática e vive práticas arcaicas como o casamento arranjado pelas famílias. O filme é de grande beleza e traz influências dos bons dramas de Almodóvar, tanto na franqueza com que retrata as questões da história, quanto no uso das cores e dos cenários como símbolos que reforçam a mensagem – com destaque para o quarto do artista e o galpão repleto de esculturas em que vive o recluso e amedrontado professor. E há, sim, belas cenas sensuais entre as personagens, em uma ousadia que não esperamos ver em produções da Índia.

Há, também, alguma música em “Badhaai Do”, dentro da tradição bollywoodiana – mas dessa vez, dentro do contexto do casamento, onde se pode esperar que haja canto e dança… “Azul Cobalto” tem uma construção cinematográfica mais “ocidental”, se assim podemos dizer. Mas a música também ocupa um belo papel no drama romântico. Se essa era a sua reserva quanto aos filmes indianos, é hora de mudar sua visão: a Índia é a maior produtora de cinema do mundo e há filmes para todos os gostos. Incluindo esses dois belos títulos, que tratam com delicadeza e coragem o amor que, agora, já ousa dizer o nome.

Se você quiser se deliciar com um filme bem tradicional de Bollywood, mas de qualidade o bastante para ter sido indicado ao Oscar, veja “Lagaan” (2001), também na Netflix – um romance histórico emocionante sobre a mais incrível partida de cricket, nos tempos em que ditavam as regras aqueles mesmos que criminalizaram a homossexualidade na Índia… Mas isso já é tema para outra conversa sobre cinema indiano!

[Robertson Frizero, escritor, tradutor e dramaturgo]

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THE END

cronica

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