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Os dois Franciscos e a mulher da casa abandonada

Os dois Franciscos e a mulher da casa abandonada

Nas últimas semanas um podcast narrativo, intitulado “A mulher da casa abandonada”, viralizou nas plataformas digitais. Quando o jornalista Chico Felitti começou a investigar o mistério da mulher que vive em uma mansão abandonada no bairro de Higienópolis, um dos mais caros de São Paulo, não imaginava seus desdobramentos e repercussão. O repórter fez um primeiro contato quando ela estava brigando com servidores municipais que derrubavam uma árvore na sua rua. Com o tempo, ele descobriu que a história daquela mulher estranha, que cheirava mal e usava uma camada grossa de pomada branca no rosto, não era um simples caso de discriminação por parte dos outros moradores incomodados com a sujeira da residência vizinha. Segundo relatos, ela estava ali escondendo-se da lei. Há mais de vinte anos, ela e o marido mudaram para os Estados Unidos e levaram com eles a empregada da casa da mãe, uma senhora negra e analfabeta. Segundo denúncias, eles não pagavam pelo trabalho e a mantinham em condições desumanas, privando-a de assistência médica e alimentação condizente.

Para não ser presa pelo FBI, responsável pela investigação, a mulher fugiu para o Brasil, enquanto o marido foi condenado pela justiça americana a seis anos de prisão.  Ela passou a viver na antiga casa da família que hoje cai aos pedaços. Mora completamente só e aparentemente sem recursos. Poucas são as pessoas com quem ela conversa. É aí que entram os dois Franciscos.

Entre os entrevistados no podcast, há dois zeladores de prédios vizinhos à casa abandonada. Por acaso, homônimos. Um Francisco fala da mulher com raiva e desprezo, não só pela sujeira e o incômodo que causa no bairro nobre, mas pelas maldades que ela fez com a empregada. O outro Francisco, refere-se a ela com certa compreensão, a ouve quando ela quer desabafar e sobe na escada para olhar sobre o muro para ver se a mulher está viva e bem, já que sobrevive em total solidão. Ninguém entra jamais na casa que foi de uma das famílias mais abastadas de Higienópolis. O pai da mulher que hoje vive entre ruínas, era um médico respeitado de São Paulo.

Embora eu considere o trabalho escravo um dos piores crimes que existem – acho mesmo que deveria estar na categoria dos hediondos e boicoto toda loja acusada de vender produtos frutos da exploração ilegal da mão-de-obra – confesso que a postura do segundo Francisco mexeu comigo. Não dá para saber o que o motiva exatamente a ser tão paciente e solidário com a mulher que todos odeiam naquela rua. Mas, pelo seu jeito terno de falar, gosto de pensar que seja por bondade e compaixão.

Investigo-me e percebo que entendo mais a indignação do primeiro zelador. Como pode uma mulher ser tão cruel com alguém que não tinha como defender-se? Além da situação análoga à escravidão, a doméstica sofria agressões físicas e psicológicas. Não há perdão possível. Mas, então, inspirada pelo segundo Francisco, pergunto-me se, mesmo tendo fugido da eventual prisão nos EUA, essa mulher já não pagou o suficiente pelo seu crime. Ela mesma se impôs uma prisão. Nos muitos cômodos que recebiam pessoas ilustres no passado, hoje ela só tem a companhia de goteiras e bichos pestilentos. Já a antiga serviçal, aos 85 anos, ainda mora nos Estados Unidos, ganhou uma casa na Justiça e tem amigos que a apóiam. Uma vida muito melhor que a da ex-patroa que virou apenas “ a mulher da casa abandonada” e – agora exposta – tornou-se uma das pessoas mais odiadas do país. Reflito e debato-me entre a indignação e a piedade,como se existissem dentro de mim dois franciscos.

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Os Franciscos

Nossa, terrível (o que ela fez). Mas, ela vai pagar isso aí. Já está pagando. E eu acho que ela não vai morrer tão cedo que é para ir pagando aos poucos. (Francisco 1)

Ela sai para conversar e, eu procuro desviar, mas aí penso: “mano, acho que é falta de ter com quem conversar, então não custa nada também você dar um pouco de atenção, né? Um apoio, conversar um pouco. Todo mundo evita, quando ela chega o pessoal se afasta. (Francisco 2)

(Publicado na Folha de São Paulo / Podcast disponível também no Spotfy)

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POR AMOR À LITERATURA

Em tempos de total descaso com a cultura, ações individuais são uma lufada de ar fresco. A Revista Paranhana Literário é um bom exemplo. Publicada bimestralmente, ela traz artigos sobre livros, contos, crônicas, poesia e entrevistas com escritores. Seu idealizador e editor é o escritor e jornalista, Doralino Souza, repórter Cultural da Rádio
Arteviva e autor dos livros Dentes no copo de uisque
(2019) O cânion de dentro ( 2016) e Anjos Também
Usam Boné
(2014).

A partir desta edição, passo a colaborar com a Paranhana, escrevendo sobre livros que viraram filme. Inicio com Marnie, o livro de Winston Graham, de 1961, que chegou às telas sob direção de Alfred Hitchcock, em 1964. No Brasil, o filme se chamou Marnie-Confissões de uma ladra. O artigo está na página 66. Espero que apreciem.

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