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Homenagem a Carlos Damião: Perdemos um grande cara – Por Cesar Valente

Reprodução/Redes Sociais

A convite do Portal Making Of, Cesar Valente, ex-colega de profissão de Carlos Damião, escreveu o texto abaixo em homenagem ao profissional, que morreu ontem, 17, após sofrer uma queda no apartamento em que morava, na avenida Hercílio Luz, em Florianópolis.

Cesar é jornalista e designer gráfico, é mestrando do Programa de Pós Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Conhecia Damião há 50 anos ou mais. Foi responsável pela capa do primeiro livro dele, na década de 70, e juntos editaram o jornal cultural Desterro.

 

Perdemos um grande cara – Por Cesar Valente

Gosto de pensar que as pessoas que mais admiro são aquelas que vivem dando murro em ponta de faca. Não são o que se costuma chamar de “bem sucedidos”, o dinheiro não lhes sobra, o trabalho remunerado nem sempre remunera adequadamente e às vezes até sonegam-lhes o trabalho. Não porque sejam incompetentes ou falte-lhes esforço ou talento, mas porque escolheram remar contra a maré, ver o que não é “de bom tom” ver e falar coisas que muitos prefeririam que não fossem ditas.

Quando olhei para o celular hoje de manhã, o tuíter estava inundado com mensagens lamentando a morte do Carlos Damião. Todos e todas, da minha “bolha”, tinham algo de bom a dizer sobre o jornalista que sabia e contava tantas histórias sobre a cidade.

Upiara Boschi: “Hoje perdemos a memória, a indignação e a generosidade do jornalista Carlos Damião”. Gastão Cassel: “Perdemos um cronista, um poeta, um jornalista e um batalhador pela democracia e as causas justas”. Dagmara Spautz: “Interagíamos muito por aqui e sempre fiz questão de falar da admiração que tenho por ele”. Denise de Castro: “Uma voz incansável em favor da justiça e da democracia”. Alexandre Gonçalves: “Que perda, que tristeza. Gigante referência e zelador da memória da cidade”. Afrânio Boppré: “Militante comunista, atuou contra a ditadura e na defesa da democracia”. Rogério Christofoletti: “Era o grande repórter da cidade, aquele que conhecia cada rua, fonte e história. Vivia a cidade como ninguém”. Ulysses Dutra: “Perdemos além de tudo uma Biblioteca de Alexandria da história florianopolitana e catarinense”.

Sempre achei que ele era muito mais moço que eu. Na década de 70, quando o conheci, era o gurizão, poeta, do “exército de Brancaleone” que o Emanuel Medeiros Vieira reuniu para editar um improvável “Desterro, jornal catarinense de cultura”. Além do Emanuel, o “conselho editorial” era composto pelos poetas Pedro Port e Carlos Damião, pelo escritor Raimundo Caruso e por este cronista, o menos intelectual da turma e o único que entendia de produção gráfica. Horas e horas de discussão sobre a pauta e sobre a linha do jornal. Chegamos a passar, a turma toda, um fim de semana em Garopaba, para discutir a literatura catarinense e como o órgão pulsante e penetrante que estávamos preparando poderia influir nos rumos da cultura catarinense.

Publicamos dois números, com escassa repercussão. Mas, valeu por ter me aproximado daquele jovem (que, descobri hoje, era apenas dois anos mais moço que eu) depois jornalista, que acompanho, meio à distância, por mais de 50 anos.

Um dia, em 1977, ele me falou que queria publicar um livreto com alguns de seus poemas. Publicamos: fiz a capa, diagramei, a Lúcia compôs o texto e um outro amigo imprimiu. Eram apenas 24 páginas, integralmente artesanais, mas acho que vocês conseguem avaliar a importância de um poeta ter, pela primeira vez, seus textos impressos. O preço, na contracapa, Cr$ 5,00 (que não tenho ideia do que representa hoje, mas era baratinho, na época) mostrava a finalidade do livreto: ser vendido nos bares, reuniões, nas ruas, para ajudar o jovem poeta a tocar sua vida. Nunca perguntei se conseguiu vender muitos exemplares. E acho que nem ele se importava muito com esse tipo de resultado para o que fazia.

Dizia ele, no início do poema “Correm os Dias”: “(manhã) soldados caminham tranquilos / pelas ruas / (não há esperança / e tampouco alegria / pelo que há de vir)”. Vivíamos a ditadura militar e a esperança era uma coisa diáfana, efêmera, mas ajudava a manter o ânimo e a continuar resistindo.

Tenho muita admiração pela trajetória profissional e pessoal do Damião, entre outras coisas, porque soube envelhecer sem se transformar num canalha reacionário, como tem ocorrido com outros colegas da mesma geração e da mesma profissão. A indignação com as injustiças, com as patifarias, com a falta de vergonha na cara, o manteve vivo e atuante. E o ímpeto de não calar nem se acomodar em cima de algum muro confortável e anódino, certamente tornou sua vida mais difícil. Não convivi muito com ele e conversavamos esporadicamente, mas além e acima de tudo o que ele sabia e procurava saber sobre a história, a cidade, a conjuntura, estavam suas gentileza e generosidade. Essa referência brota abundantemente nos comentários póstumos, feitos por amigos e conhecidos.

Perdemos, então, um cara gente boa. Que tratava a todos como todos gostam de ser tratados. E mantinha sua coluna ereta, como deve ser. E que, como tanta gente boa que temos perdido, não precisava nem devia ter ido embora. Aos que ficaram, resta a responsabilidade de manter viva a sua memória e, principalmente, compartilhar das indignações que o mantinham vivo.

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