Visitei Drummond e Quintana na tarde do último sábado, depois que a água do Guaíba recuou o suficiente para o curioso aqui se aproximar e ouvir parte do diálogo silencioso entre os poetas na Praça da Alfândega. Apesar dos pés sujos e do mau cheiro do entorno, mantinham se serenos e concentrados numa conversa verdadeiramente intrigante.
– Nunca dês um nome a um rio: sempre é outro rio a passar – dizia Quintana.
Drummond, visivelmente incomodado, reclamava:
– E sobre nossos corpos se avoluma o lago negro de não sei que infusão.
Era o esgoto que manchava as pedras coloridas da praça e chegava às pernas dos dois amigos. Como as bombas da Capital não funcionaram, a água voltou por onde deveria ter saído e deixou a cidade imunda. Quintana preferiu ignorar a queixa do amigo e mudou de assunto:
– Quando eu acordar amanhã, livre e liberto como uma asa, vou rezar a São Jerônimo, vou rezar a Santa Bárbara, por este nosso fim de século, pobre nau perdida no nevoeiro que em vão busca o rumo das eternas, das misteriosas Américas ainda por descobrir.
Não sei se Drummond entendeu o desabafo do alegretense. Na dúvida, o mineiro preferiu fazer um comentário otimista:
– Flui a vida como a água. Como a água se renova. Se a vida me foge, afago-a, em cada esperança nova.
Ao ouvir a menção sobre a vida em fuga, Quintana lembrou-se da outra grande enchente que presenciou em Porto Alegre e sobre a qual escreveu um dolorido poema. Recitou-o, inteiro:
Cadáveres de Ofélias e cadelas mortas/ virão parar por um instante às nossas portas.
Porém — sempre à mercê dos redemoinhos —/ prosseguirão depois seus incertos caminhos…
Quando a água alcançar as mais altas janelas/ eu pintarei rosas de fogo em nossas faces amarelas.
Que importa o que há de vir? Tudo é poupado aos loucos/ e os loucos tudo se permitem. Vamos!
Espíritos de deuses, sobre as águas pairamos./ Alguns de nós dizem que apenas somos nuvens…
Outros, uns poucos,/ dizem que somos nada mais que mortos…
Mas não avisto, lá embaixo, os nossos próprios/ defuntos… E em vão, também, olho em redor…
Onde é que estão vocês,/ amigos, amigas, dos primeiros e dos últimos dias?
É preciso, é preciso, é preciso continuarmos juntos!
E, então, num último, e diluído, e triste pensamento/ eu sinto que o meu grito é só a voz do vento…
Drummond aplaudiu, mas resolveu brincar com a morbidez do colega gaúcho:
– Tudo somado, devias precipitar-te, de vez, nas águas.
Juro que ouvi, com os ouvidos da imaginação e após uma consulta às obras dos dois grandes poetas.
*Coluna de Nílson Souza.
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