Por Janine Alves, economista, colunista de economia
O ano começou com uma boa notícia: o percentual de famílias endividadas no Brasil está em queda, mas alcança mais de 76% da população, segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), da CNC. Em um país onde o crédito é, muitas vezes, a válvula de escape para lidar com a insuficiência de renda, qualquer recuo no endividamento parece promissor. Mas é preciso olhar além da estatística: estamos longe de poder comemorar.
O patamar de endividamento ainda é elevado — e o mais preocupante é o que está por trás desses números. O endividamento crônico compromete a renda disponível, afeta o consumo, fragiliza a economia doméstica e deteriora o bem-estar das famílias. A maior parte das dívidas vem do cartão de crédito e de empréstimos com juros altos, onde a inadimplência cresce com o desespero. A sensação de alívio para quem consegue quitar as dívidas é real, mas para milhões de brasileiros, o peso do juro mensal sufoca qualquer tentativa de reorganização financeira.
É nesse cenário que o governo lançou o programa Crédito do Trabalhador, permitindo que o FGTS seja usado como garantia para empréstimos consignados. A adesão foi imediata: mais de R$ 6 bilhões contratados em poucas semanas, por mais de 1 milhão de brasileiros. Parece bom — e de fato, pode ajudar em casos emergenciais —, mas há um risco enorme de transformar o fundo, que deveria garantir proteção ao trabalhador, em uma moeda de troca diante de uma economia que não consegue garantir estabilidade – até porque a incertezas são grandes e afetam a economia global.
A análise por faixa salarial mostra que não se trata apenas de uma questão de pobreza. Pessoas com renda superior a oito salários mínimos também estão recorrendo a esse tipo de crédito. Isso revela algo mais profundo: o descontrole financeiro não conhece classe social. Ele nasce da soma entre a dificuldade de poupar, o consumo por impulso, a pressão do status e a ausência de educação financeira em todas as fases da vida.
É nesse ponto que precisamos virar a chave do debate: o problema não está apenas na oferta de crédito, mas na falta de preparo para lidar com ele. Incentivar a contratação de empréstimos sem uma política robusta de educação financeira é como oferecer um colete salva-vidas sem ensinar a nadar. E com a taxa Selic ainda elevada, o custo de errar continua alto.
O Brasil precisa enfrentar o superendividamento como uma questão estrutural. Isso passa por ampliar o acesso à educação financeira nas escolas, regulamentar práticas abusivas de crédito, incentivar a poupança, promover proteção de renda e, sobretudo, tratar o consumo responsável como um valor social. Sem isso, a cada nova linha de crédito, estaremos apenas adiando o colapso — pessoal e coletivo.
A queda no endividamento é um alívio estatístico. Mas se não mudarmos a lógica que produz o endividado, ela será apenas mais uma onda passageira, antes da próxima maré de inadimplência, somada ao perigoso jogo de inflação persistente e da política de juros altos.