Nosso Cinema
A melhor notícia deste ano na área do audiovisual foi ver o cinema brasileiro sair do limbo e alcançar sucesso de crítica e público. Essa reação já tinha começado no ano passado, com os bem sucedidos “ Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça, as cinebiografias “Mussum, O filmis” e “ Meu nome é Gal” e até alguns que mereciam mais destaque, como “O sequestro do vôo 375” e “Propriedade”.
Em 2024, o nosso cinema ganhou musculatura e alcançou picos de bilheteria, principalmente, com “Ainda estou aqui” que está nos fazendo sonhar com o Oscar para a atuação de Fernanda Torres. Mas, a importância do filme de Walter Salles vai muito além do retorno financeiro ou premiações internacionais, ele cumpre o papel de relembrar uma página trágica da história do Brasil. Há coisas que não podem ser esquecidas para impedir que voltem a acontecer. Baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva, “Ainda estou aqui” mostra como uma família feliz, a do próprio autor, ficou sem a figura paterna quando o ex-deputado Rubens Paiva foi sequestrado, torturado e morto durante a ditadura militar. O mais louvável no filme de Salles é que ele nos mostra a barbárie dos anos de chumbo e a luta da viúva de Rubens, Eunice Paiva, sem apelar para o sentimentalismo fácil. Sentimos a dor daquela família, representando muitas outras que passaram por coisa semelhante, com um nó na garganta e levamos aqueles eventos e aquelas pessoas conosco por muitos dias depois de deixar o cinema. Uma obra para não esquecer jamais.
O ano encerra com outros belos títulos como “ Malu”, de Pedro Freire, “ O auto da Compadecida 2”, com o reencontro de Chicó (Selton Mello) e João Grilo (Matheus Natchgaerle) vinte anos depois, e “Retrato de um certo Oriente”, baseado na obra de Milton Hatoum.
Cinema de outras paragens
Até já andei falando aqui dos meus filmes favoritos e esta é a minha lista. Como ainda não vi alguns títulos importantes, como “Anora”, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, a seleção pode estar incompleta.
Começo com o adorável “Dias Perfeitos”, filmado no Japão pelo diretor alemão, Wim Wenders. É um primor de delicadeza que teve origem quando Wenders foi convidado para dirigir campanha institucional sobre os novos banheiros públicos de Tóquio. Esse é mais um exemplo de que o olhar do artista pode encontrar beleza onde não vemos.
Outro filme que me encantou foi o francês “O sabor da vida”, de Trun Ang Hung, com a sempre maravilhosa Juliette Binoche e o ex-marido dela, Benoit Magimel. Eles são Eugenie e Dodin Buffant, cozinheira e patrão, um chef de prestígio. Muitos filmes com a gastronomia como pano de fundo já foram feitos desde o magnífico “A Festa de Babete” (1987), mas esse traz o esmero com a fotografia na hora da preparação dos pratos, feitos delicadamente a dois por Eugenie e Dodin. Essa beleza toda é importante para entender o amor existente entre eles, mesmo ela não aceitando casar com ele.
Quem acompanha a coluna sabe o quanto eu gosto da obra de Pedro Almodóvar, então é óbvio que não poderia faltar nesta lista “O quarto ao lado”, primeiro longa do espanhol falado em inglês. Isso aumentou o descontentamento de parte de seus conterrâneos que têm origem nos posicionamentos políticos do diretor. Isso não impediu que o filme recebesse o prêmio principal no Festival de Cinema de Veneza e que esteja entre os prováveis nominados ao Oscar. “O quarto ao lado” fala da amizade entre duas mulheres que se reencontram quando uma delas recebe a notícia de uma doença terminal. Tilda Swinton, que já trabalhou com Almodóvar no curta “ A Voz Humana” e Julianne Moore são as protagonistas desse drama que aborda solidariedade e livre arbítrio sobre a própria morte.
Anatomia de uma queda, de Justine Triet, venceu a Palma de Ouro em Cannes em 2023, mas só chegou aqui este ano. Um misto de drama com filme de tribunal, a trama começa quando o marido francês da escritora alemã Sandra cai de uma sacada; a esposa e o filho o encontram o corpo sobre a neve. O processo para decidir se foi suicídio, homicídio ou acidente acaba incriminando Sandra, e ao longo de duas horas e meia descobrimos publicamente os pormenores privados desse casamento, sejam eles pertinentes à investigação ou não. A protagonista, Sandra Huller, recebeu vários prêmios pelo papel.
A memória infinita é um documentário chileno , dirigido Maite Alberti, que acompanha desde o início o processo de Alzheimer do jornalista Augusto Góngora, acompanhado pela mulher dele, a atriz Paulina Urrutia. O maior medo deles no início da doença, quando Augusto ainda está lúcido, é quando ele esquecer quem é Paulina, com quem está casado há vinte anos. E esse momento chega, dificultando a convivência entre o casal, mas Paulina segue com o marido até o fim. Por ironia do destino, Góngora usou seu trabalho como jornalista para manter viva a memória das atrocidades cometidas contra milhares de cidadãos chilenos durante a ditadura militar. O comovente filme de Maite Alberti concorreu ao Oscar de Melhor Documentário na última edição.
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As melhores séries do ano
Tivemos muitas séries e minisséries boas em 2024. Algumas, mais que boas: ótimas. Tentei fazer uma lista enxuta, então posso ter cometido alguma injustiça.
Xógum – A gloriosa saga do Japão é uma das melhores. Baseado no romance histórico de James Clavell, a série retrata o mundo dos samurais e o encontro do major inglês John Blackthorne com a cultura japonesa, depois que seu navio naufraga e a tripulação é feita prisioneira. Há cenas e situações chocantes como um dos prisioneiros ser cozido lentamente num caldeirão ou a regra inflexível de que o filho precisa ser sacrificado quando o pai comete algum erro considerado grave, mesmo que ainda seja um bebê. É bom que se diga que a saga se passa em 1600. Mas, há também o lado admirável da cultura local, que Blackthorne vai descobrindo aos poucos com sua proximidade do líder local, Yoshi Toranaga. Um dos méritos da série vem da presença de Yoruki Sanada no papel de Toranaga e suas imposições, como produtor, de que a equipe fosse japonesa. Já houve uma adaptação pela americana NBC do romance de Clavell nos anos 80, onde os atores principais eram Richard Chamberlay e Toshiro Mifune. A nova versão fez tanto sucesso que vai haver uma segunda temporada, mesmo a trama original tendo se encerrado na primeira.
Ripley é uma minissérie em oito episódios, baseada no romance de Patricia Highsmith, que já rendeu o ótimo filme “O poderoso Ripley” (1999) com Matt Damon. Thomas Ripley, interpretado por Andrew Scott ( Fleabag )é um vigarista que recorre ao assassinato para roubar a vida com que sempre sonhos. A fotografia em preto e branco torna a história ainda mais sombria. Dakota Fanning, uma das melhores atrizes de sua geração, é a namorada do herdeiro que suspeita de Ripley desde o início, criando um suspense angustiante. Uma produção sofisticada que entra para o meu ranking das melhores.
Kaos merecia ter feito mais sucesso! Produção esmerada, humor ácido, tendo como personagens os deuses do Olimpo. Zeus em estado paranóico achando que querem derrubá-lo, Prometeus armando uma cilada, o jovem tentando resgatar a amada do vale da morte… São muitos personagens contando de forma divertida o conflito entre humanos e deuses e entre deuses e deuses… Jeff Goldblum faz um Zeus impagável, cruel e mimado, com Hera ao lado, armando junto com Poseidon, seu amante… Uma lástima a série não ter sido renovada para uma segunda temporada.
Outras séries muito boas
- Bebê Rena é a minissérie que deve abocanhar todos os prêmios dessa temporada. Baseada na peça de mesmo nome, criada e interpretada por Richard Gadd, a trama é meio autobiográfica e relata a perseguição que sofreu depois de ser gentil com uma mulher que entra no bar onde ele trabalhava. Além da bizarrice, Gadd conta sobre abuso sofrido por parte de um produtor famoso.
- Only murders in the building – comédia com mistério e as presenças gloriosas de Martin Short e Steven Martin no elenco.
- Disclaimer – drama e suspense dirigido pelo mexicano Alfonso Quarón, com Cate Blanchett e Kevin Kline.
- Cidade de Deus – baseada no famoso filme de Fernando Meirelles, a série não fez feio. Teve drama, ação e o ritmo perfeito, com boas atuações.
- Cem Anos de Solidão encerrou o ano surpreendendo os amantes do romance de Gabriel Garcia Marquez pela qualidade da adaptação.
- Um cavalheiro em Moscou conta a história inusitada do Conde Alexander Rostov que fica confinado durante anos em um hotel de Moscou, depois de ser apontado como traidor por ter escrito um poema considerado ofensivo ao regime. Sem poder jamais sair do hotel, ele acaba conhecendo e se relacionando com hóspedes do lugar, incluindo uma garotinha que é peça importante na trama. Ewan McGregor produziu e é o protagonista da série.
- Nada é uma série argentina deliciosa, com o veterano Luis Brandoni vivendo um rabugento crítico gastronômico que perde sua empregada de toda a vida e precisa adaptar-se a uma jovem paraguaia que vem trabalhar na casa dele. A série tem a presença luxuosa de Robert De Niro em cenas divertidíssimas, por exemplo, ao tentar explicar termos do cotidiano argentino, como o xingamento “pelotudo”
Muita expectativa e pouco resultado, as decepções do ano!
- O ídolo começou e terminou o ano como a maior decepção de 2024. Ambientada na indústria fonográfica, a série gira em torno de uma sexy e promissora cantora pop e seu relacionamento com um empresário dominador e controverso. Ela é interpretada por Lilly-Rose Depp, filha de Johnny Depp, e pelo rapper The Weeknd, criador da trama. O fracasso de público e as confusões nos bastidores encerraram a série na primeira temporada.
- O Regime, com a ótima Kate Winslet, agradou parte da crítica. Já eu, não curti a série que se pretende satírica, mas acaba pretensiosa. Em um país fictício da Europa Central, Kate é a chanceler/ ditadora que resolve peitar grandes potências, mas faz tudo errado ao ser influenciada pelo amante, o oficial conhecido como “O Açougueiro”. O Regime chegou super bem anunciado, mas não cumpriu a expectativa.
- Ainda não cheguei a ver, mas no cinema a grande decepção da temporada parece ter sido o esperadíssimo “Coringa – Delírio a Dois”, que juntou o mesmo Joaquin Phoenix do bem sucedido “Coringa”, com a diva pop Lady Gaga. Contar a novas desventuras do vilão mais famoso da franquia Batman em musical não deu muito certo. Em termos de bilheteria, quase deu empate com o orçamento ( 200 milhões de dólares), mas o marketing para divulgação custou outra parcela milionária dessas.
As maiores surpresas do ano
- Demi Moore, conhecida por sua beleza e papéis sexys, volta à berlinda depois de alguns anos com um gênero totalmente diferente em “A Substância”, uma crítica bizarra à busca desenfreada pela eterna juventude. Ter encarado corajosamente o papel de uma atriz em processo de envelhecimento e ostracismo num filme do tipo body horror [ sangue, tripas e imagens grotescas do corpo humano) parece ter renovado a carreira de Demi. Ela está indicada a vários prêmios e, claro, de olho no Oscar. A ver.
- Duna 2 conseguiu uma coisa rara em continuações: ser tão boa ou até melhor que a primeira parte. Timothée Chalamet, como Paul Antreides, tem a companhia da estrela Zendaya, amada pelo público jovem, e de nomes como Austin Butler, Javier Bardem, Stellan Skarsgard e Christopher Walken. Trilha sonora, fotografia, grandes planos…Duna2 nasceu para ser visto na tela grande, uma forma perfeita de incentivar o público a ver filmes onde se deve.
- Wagner Moura sedimentou seu espaço em Hollywood este ano. Foi muito bom acompanhar sua desenvoltura atuando em inglês na série “Iluminadas”, ao lado de Elizabeth Moss, e brilhando no filme “ Guerra Civil”, onde interpreta um correspondente de guerra em um cenário distópico. A coluna deseja todo o sucesso do mundo a Wagner que já provou, além de grande ator, ser um diretor de talento.
O último adeus do ano?
Estava fechando a coluna hoje (26/12) quando veio a notícia da morte de Ney Latorraca, aos 80 anos. Desejando que esse seja o último obituário do ano na área artística, não poderia deixar de prestar uma homenagem ao ator conhecidíssimo por seu trabalho na televisão e que me fez dar muitas gargalhadas, mas que fez também mais de vinte filmes ao longo da carreira. Entre ele,“O Beijo no Asfalto”, “ Anchieta José do Brasil”, “Festa” e “Carlota Joaquina, princesa do Brasil” e “Irma Vap”. Descanse em paz, Seu Neyla.
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Essa foi a Retrospectiva 2024 da coluna Crônicas, Séries e Filmes.
Desejo a todos um próspero Ano Novo!
*Fotos: Divulgação/Reprodução