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Da arte, dos humanos e das profundidades

Artista, professor e produtor cultural, bacharel e licenciado em artes visuais pela UDESC, natural e morador de Garopaba, Fabrício Garcia expõe em Florianópolis a mostra “Redes do Invisível. A exposição, que reúne 13 pinturas magníficas, pode ser conferida no Espaço Cultural BRDE Governador Celso Ramos até o dia 7 de outubro.

Sob a curadoria de Marcello Carpes, é possível perceber em outro prisma a produção de um dos caricaturistas mais premiados de Santa Catarina, com mais de 40 conquistas nacionais, com destaques em salões e bienais internacionais.  Na caricatura, ele se tornou conhecido pelo apelido Manohead.

A abertura da exposição no BRDE, ocorrida em 8 de setembro, foi um acontecimento que aproximou Garopaba de Florianópolis. Com convidados vindos inclusive de van, com live ao vivo, o espaço lotou com uma diversidade de pessoas emocionadas com as obras e com o artista que tem uma atuação engajada na sua comunidade, um articulador no campo da cultura – é, por exemplo, o idealizador e organizador do Encontro de Pintura ao Ar Livre de Garopaba e produtor do documentário “A Arte em Garopaba”.

Nesta entrevista exclusiva, Fabrício Garcia conta como criou as obras, aponta como a pandemia foi determinante nesta produção e revela parte do pensamento de alguém que vive de arte fora do eixo hegemônico da Capital, onde expor, segundo ele, “é a possibilidade de estabelecer conexões, abrir novas janelas, novos olhares, a possibilidade de ascender, ser visto aos olhos de outros. É um passo adiante, um caminho natural aos artistas que buscam seu espaço”.

 

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Como define a produção realizada durante a pandemia? Como foi o processo?

Fabrício Garcia – A pandemia me trouxe antigos temores como o apagamento, o desaparecimento, a morte em si. Eles pareciam ter se dissipado, mas voltaram à tona. Essas relações sempre me atormentaram e principalmente neste período de isolamento. O primeiro passo foi tentar entender quem eu era nesse lugar. A partir da percepção do meu entorno, procurei um modo de retratar estes outros invisibilizados. Neste diálogo com o outro, passei também a me enxergar como artista deslocado do circuito das artes de Santa Catarina. Apresentar o pescador foi, portanto, imprescindível na construção dessa narrativa poética. Para compreender melhor todo o universo pitoresco que envolve o ofício da pesca, precisei me debruçar sobre diferentes texturas, sobre a luz refletida na escama e que insistia em fugir de meus olhos, além de perceber no visceral a beleza contida naquela ação. A faca que abre o peixe é como o pincel que, embebido de tinta, tinge as tramas da tela.

Tela Poéticas Invisíveis

O que significa ser um artista de Garopaba? Quais as dificuldades que enfrenta?

Garcia – Apesar de ser uma cidade turística e litorânea, com trânsito de diversas culturas, a mesma não dispõe de espaços culturais e de formação que possibilitem o acesso ao pensamento sobre essa realidade. As influências de diferentes culturas nos atravessam sem que tenhamos condições de refletir sobre esses processos. Isso gera uma incompreensão do valor da cultura local, suas origens e identidades. Ser reconhecido como artista é antes de mais nada uma luta solitária por sobreviver, luta cotidiana para que seu ofício seja aceito. O difícil não é ser artista em si, mas ser visto como um profissional, como alguém que tem algo a contribuir, e muitas vezes por ser novo ou desconhecido, é visto como desimportante para aquele lugar.

Como vê a oportunidade desta exposição em Florianópolis?

Garcia – Expor na Capital é a possibilidade de estabelecer conexões, abrir novas janelas, novos olhares, a possibilidade de ascender, ser visto aos olhos de outros. Estar na Capital é um passo adiante, um caminho natural aos artistas que buscam seu espaço, a oportunidade de levar não apenas o meu trabalho, mas também um pouco do contexto no qual estou inserido e venho desenvolvendo nestes últimos anos.

Paula Borges e Marcone Melo prestigiando Fabrício na mostra (Foto Maria Luisa Coura)

Você é um autodidata. Aprendeu as técnicas artísticas quase sozinho. Como se forma um artista numa pequena cidade de Santa Catarina? E como essa experiência e habilidades se situam dentro de uma instituição universitária como a Udesc, onde se formou?

Garcia – Minha formação se dá inicialmente pelo desenho. Basicamente o objeto de inspiração eram as páginas de histórias em quadrinhos (HQs) que conseguia comprar na banca de revista. A pintura só foi aparecer muitos anos depois, quando comprei meu primeiro computador. A partir daí, passei a me dedicar à pintura digital, e mergulhar no universo das cores. Nesta época, comecei a enviar trabalhos para salões de humor, os quais poucos aceitavam trabalhos digitais. A partir daí busquei aprender técnicas tradicionais, como a pintura em acrílica e posteriormente o óleo, para assim poder continuar a participar dos concursos. Uma vez na Udesc, logo no primeiro semestre, percebi que o tipo de trabalho que eu fazia, era pouco apreciado na instituição, parecia haver um consenso onde o conceito prescindia a fatura. A percepção da figuração na academia é um pouco deturpada. Não existe um estímulo para que aqueles que trabalham com a figuração, busquem desenvolver sua poética.
No entanto, é importante reconhecer que foi a partir da chegada na Udesc que meu trabalho começou a ganhar densidade poética ao me debruçar sobre os textos indicados pelos professores. A universidade também foi o lugar onde conheci e aprendi técnicas como gravura e cerâmica.

Fabiano Teixeira dos Santos registrando a obra (Foto Maria Luisa Coura)

Pelo fato de viver no litoral, ao Sul da Capital, não teme análises apressadas de sua produção no sentido de que as representações feitas sejam reduzidas apenas ao universo pesqueiro? Essa é uma questão que te preocupa?

Garcia – Ao longo da minha trajetória, com mais de 22 anos de produção, adotei diversas temáticas, quase todas relacionadas à figuração. Trabalhei também com temas ligados ao meu entorno com imagens mais próximas da abstração, mas meu olhar para com essas imagens ainda permeavam o universo figurativo. É comum em um primeiro momento o observador e até mesmo um crítico associarem meu trabalho meramente ao contexto local, afinal estou pintando temas como a pesca, os peixes, as redes. Fato é que existe uma necessidade primária de criar determinados rótulos para identificar os artistas. Já fui considerado “o artista de rua”, outrora “o que fazia caricaturas”, e agora “o que pinta peixes”. No entanto, penso que minha produção perpassa diferentes camadas, mais profundas do que a primeira capa de imagem apresentada. Passada a contemplação inicial da técnica figurativa, o observador pode se conectar aos peixes, e perceber ali outras relações possíveis de vida e morte, do tempo, das impermanências, das violências cotidianas, das invisibilidades e apagamentos. Deste modo, qualquer um pode fazer parte daquele cardume. Talvez assim seja possível captar as nuances do que venho a dizer, podendo entender muito além dos peixes ali representados.

Marcello Carpes, Helena Fretta e Antonio Fasanaro (Foto Maria Luisa Coura)

Você tem uma trajetória consistente, inclusive com cerca de 40 premiações, no universo da caricatura brasileira. Como essa produção se ajusta a esse momento? Quais são as aproximações possíveis entre esses dois momentos?

Garcia – A caricatura me possibilitou treinar o olhar para as minúcias, os detalhes que por vezes ignoramos ou desejamos ignorar. Uma ruga em um rosto – que por vezes se traduz como uma “imperfeição” que desperta o desejo de negação -, é o que nos faz únicos. Assim como as ramificações da pele que, em atenta observação, são quase uma forma abstrata que lembra uma rede, ou mesmo os padrões das escamas dos peixes. Quando pinto os peixes em grande formato, estou tirando eles da sua proporção natural, é uma forma de “exagerar” o tema apresentado. Assim como na caricatura ao exagerar uma característica do modelo para que se possa ter uma atenção maior sobre ela, pintar essas obras em maior escala, estimula um olhar de maior interesse. Sendo assim, a aproximação da caricatura com os peixes se dá não apenas pelo tamanho das telas, mas pelo cuidado ao representar cada detalhe, como se fosse uma dobra de pele.

As mãos na história da arte: na obra de Michelangelo na abóbada da capela Sistina, no Vaticano, as mãos de Monalisa, só para citar dois exemplos. Por que o destaque das mãos nesta exposição?

Garcia – Pintar mãos é uma forma de me relacionar com aqueles presentes ali na tela. Apesar de ser neto de pescador, nunca pesquei, mas meu percurso como artista, como artífice que utiliza as mãos para materializar o ofício, faz com que de alguma forma isso me conecte ao cerne da poética, da minha pesquisa. Não se trata de autorretratos, mas de enlaces, costuras que formam uma grande rede de conexões entre o eu artista e o eu morador deste lugar.

Nesta exposição afirma-se o valor da memória e da ancestralidade. Você faz uma homenagem ao seu avô e sua mãe. Afinal, qual é o papel da arte?

Garcia – Expor as imagens do meu avô e da minha mãe, pode ser considerada como uma representação simbólica do “nativo”, mas existe também uma afirmação familiar neste caso. Nas cidades pequenas é comum a influência das famílias nas relações sociais. Quando se trata de pesca, apesar de meu avô ter sido um importante pescador da cidade, pouco se fala sobre o seu nome. Já tive a oportunidade de ver homenagens a vários pescadores, mas nunca uma para ele. Assim sendo, essa é uma forma de apresentá-lo, não apenas como alguém importante para a família, mas também para a cidade. A afirmação familiar coincide também com esse momento da minha trajetória profissional que passo a assinar como Fabrício Garcia.

A arte é a tentativa de fixar a nossa passagem diante do tempo. É através dela que podemos perdurar nosso ser/estar diante do aqui e agora em um futuro no qual não estaremos mais aqui. Apresentar o outro, seja em imagem ou em som, é de certa forma possibilitar a materialidade da lembrança, algo que potencializa e transforma a memória em substrato inconsciente. Enfatiza aquela presença também no outro e não apenas em nós. Declinamos assim do esquecimento daquele ser, ascendendo-o diante de novos olhares. O tempo que não se permite pará-lo, assim como uma corredeira de um rio, nos faz buscar criar barreiras para conter sua corrente, e essa barreira transforma aquele lugar.

 

Drops

O que é imprescindível:  educação

Um desejo recorrente: aprender mais

O que mais fascina na história da arte: a permanência

Corre para ver o quê: arrasto de tainha

Um ídolo: Iberê Camargo (1914-1994), artista gaúcho

Modéstia à parte: fui premiado em Piracicaba

Elegância: discrição

Florianópolis: novas possibilidades

Infância: dinossauros

Palavra: conhecimento

Uma frase: Só pensso em vose (tatuagem no braço do pescador Lelé)

Na pandemia eu … busquei refletir e me dedicar intensamente sobre meu processo de criação

 

Serviço

O quê: Exposição “Redes do Invisível”, de Fabrício Garcia

Onde: Espaço Cultural BRDE, av. Hercílio Luz, 617, Centro, Florianópolis (SC), tel.: (48) 3221-8100

Quando: Até 7.10.2022. Segunda a sexta, 13h às 19h

Quanto: Gratuito

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