Foto: Divulgação/Felipe Arruda
O inverno já tinha chegado na Europa, era uma manhã gelada na França, com neve, pouco movimento nas ruas e muito aconchego dentro das casas. Foi assim que ela descreveu o dia na cidade onde mora, Montluçon, a 300 quilômetros de Paris. Uma cidade medieval, com cerca de 35 mil habitantes, na região central da França. Eu aqui em Florianópolis, feliz com o calor, mas imaginando a cidade descrita naquele momento pela brasileira Nara Lisboa e uma vontade de ver tudo de perto, conversar com ela olho no olho e beber vinho. Mas o papo foi mesmo por vídeo, bem longo, porque a entrevistada especial da coluna da semana tinha muito o que contar. Nara se mudou para a França há 20 anos, depois de muitos anos morando em Florianópolis, fazendo o que mais gostava, trabalhar com música, compor e interpretar, juntando muitos amigos e estabelecendo uma relação permanente com a cidade. Antes, trabalhou na área de marketing na então da RBS, onde fomos colegas e trocamos muitas experiências de vida. Mas o marketing a impedia de viver em toda sua plenitude, largou tudo, pegou o violão e foi ganhar a vida como artista, algo que sabia seria uma jornada cheia de desafios, aquela corrida de obstáculos, com quedas e vitórias que todo profissional da música conhece muito bem.

Nara Lisboa em Montluçon na França (Fotos: Divulgação)
Nara Lisboa trouxe a música ao longo da vida, desde pequena o caminho já se desenhava em seu futuro e para sempre. Uma especial parceria foi com o instrumentista Renato Borghetti, de quem guarda belas lembranças sobre seu encantamento com o universo da música, especialmente com a Bossa Nova, estilo que uniu os dois em um projeto. Além da bossa nova, as composições de Nara vão do samba, choro, balada, rock ao blues. Música e letra surgem sempre juntas, algo que começou aos 15 anos de idade e que ela define como “psicografia musicada”.
Em Florianópolis, foram tempos de novos ares, ritmo de vida louco e alguns devaneios. Mas no centro estava a compositora, que gravou discos, fez shows, clipes e se manteve honesta com seu estilo de fazer sua própria história. Seu último show aqui foi no começo da pandemia, em Santo Antônio de Lisboa, onde morou por muito tempo e deixou seu legado de mulher forte, livre, corajosa, ousada, sempre alegre e motivada pela vida.
Show em Floripa – Santo Antônio de Lisboa (Foto: Divulgação)
Na França, não é menos marcante a presença de Nara Lisboa. Nestes 20 anos por lá, pisou em muitos palcos, cantando em português, inglês e francês, sempre compondo e cantando suas letras ou canções de parceiros, como as do ex-marido Bernardo Brum, a quem a Nara guarda uma profunda gratidão por todo o apoio que recebeu dele para fazer a vida na França acontecer. Juntos, trabalharam muito e chegaram a abrir um cabaré, que durou o tempo que precisava para eles se cansarem do ritmo que uma casa noturna exige.
Foram eles que criaram também uma associação de intercâmbio para facilitar o acesso de músicos brasileiros ao meio musical francês.

(Foto: Divulgação)
Depois de gravar o segundo disco, fazer o que mais amava, estar no ambiente que precisava para respirar, sobreviver ficou mais complicado, porque o dinheiro não entrava. Foi então que Nara direcionou seu talento para outra arte, o tricô e o crochê, uma habilidade adormecida e que aprendeu com a mãe aos oito anos de idade. Começou fazendo bolsas e depois outras criações exclusivas. Na trama das lãs descartadas na região onde mora, misturou tricô com crochê e nas diferentes cores de fios e texturas, desconstruiu o tricô tradicional para criar o que na moda é chamado de tendência.
E tricotando faz coletes, echarpes, casacos, suéters e tudo mais que a imaginação da criadora é capaz de fazer no ponto a ponto dos seus dias.
Tudo acontece em seu ateliê/casa, onde Nara hospeda viajantes e que não resistem em levar uma peça, algo que acabou tornando o trabalho dela conhecido na Europa e em outros continentes. O mundo digital também está à disposição e através de um aplicativo expõe e vende suas criações, que ela aproveita também para vender CDs de sua carreira musical, num diferenciado complemento artístico. Aliás, Nara Lisboa conta que a composição de uma nova letra surge no ato de tricotar, assim como o inverso também é verdadeiro, parte de uma nova música pode estar num belo e colorido casaco de lã, basta dar espaço para a imaginação que chega sem avisar. No processo criativo, Nara chegou às colchas, que ela faz apenas para uma amiga fazendeira, porque exige muito tempo, trabalho e o mais importante, segundo ela, paciência de budista.


Peças em crochê e tricô de Nara Lisboa (Fotos Divulgação/@naralisboaknittinghandmade)
Voltando a música, Nara Lisboa está preparando um novo trabalho com muitas letras em francês, com direção musical de seu neto, Erick Endres, guitarrista, que mora em Florianópolis. As gravações serão feitas em março, se a pandemia permitir, no Armazém Sonoro, em Porto Alegre.
E com a lucidez de quem sabe onde moram os detalhes mais importantes da vida, Nara afirma ” Fazer o trabalho com o meu neto tem mais importância que uma plástica aos 71 anos de idade”.
Nara tem uma música em que diz ” mamãe é muito louca”, mas ela própria é uma ” vovó muito louca”. Nesta mistura de vida, de quem corre seis quilômetros por dia, parou de fumar e só pensa em viver e criar, Nara define assim sua vida na França: “La France m’a appris la patience et m’a donné une autre chance de recommencer. Apprendre et essayer de remplacer l’ego par l’amour de vivre en paix sans compétition ni solitude” – “A França me ensinou a paciência e me deu uma outra chance de recomeçar. Aprender e tentar substituir o ego pelo amor de viver em paz, sem competição nem solidão”.

Foto: Divulgação
Feliz eu sou em contar esta breve história de uma pessoa malucamente especial. Tricotando, compondo e cantando, Nara Lisboa é aquela canção especial, iluminada, que em forma de mulher toca e marca nossas vidas.
Até a próxima semana e mais uma história de pura beleza e talento.
@anselmoprada