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O primeiro conto

O primeiro conto

Encontrei no meio de uma papelada um jornalzinho dos tempos de colégio, onde publiquei meu primeiro conto. É interessante ver como escrevia aquela adolescente e também descobrir palavras que envelheceram – esquife, anágua, gozado… – junto com a própria autora. Peço aos leitores, condescendência com a jovem contista. Obrigada.

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A SUICIDA

Estou decidida. Não foi uma resolução momentânea. Foi algo bastante pensado, calculado, medido. Motivo ? Uma desilusão amorosa, problemas financeiros, um caso ruim na família ? Não. Resolvi acabar com tudo porque senti que não vale a pena viver, se é que se pode chamar vegetação de vida. Resolvi morrer porque detesto o vazio!

Saí mais cedo do escritório. Passei na farmácia e comprei um vidro de barbitúricos. Vou terminar com minha vida, mas penso no modo mais fácil de fazê-lo. Ah, o eterno comodismo humano! Cheguei a pensar em outros métodos: um tiro, veneno, um choque com o carro…oh, não, é tudo tão dolorido!

Já está tudo acertado. Liguei para o agente funerário e encomendei meu esquife, escrevi uma carta dirigida à polícia para não complicar a vida de ninguém. Já ia me esquecendo, preciso telefonar para a floricultura, afinal não é todos os dias que se morre e eu quero ter muitas flores no meu final. Sabe como é, para que os maldosos não digam que “se ela não soube viver, morreu ainda pior”. Quero fazer algo digno da morte, afinal se a vida não presta ao menos morrer tem que nos dar uma sensação de grandeza.

Preciso ainda passar minha blusa de seda, não quero estar deitada no caixão com a roupa amarrotada. Seria um contraste com tantas flores lindas e eu mal vestida. Aliás, sempre fui medíocre em tudo, como pessoa, como profissional, como mulher e amante.  Quero ao menos morrer bem.

E o lugar? Não sei se na cama…não, basta de comodismo. No banheiro é muito clichê, quase todo mundo escolhe o banheiro como local derradeiro. Eu sempre quis ser original, tentativa vã, diga-se. Talvez sentada no sofá, televisão ligada e o copo ao lado. Uma bela cena. Assunto resolvido. Eu gostaria de deixar uma carta pessoal para alguém. Uma mensagem chocante que fizesse a pessoa chorar, mas não possuo ninguém, como nunca possuí nada.

Esta minha frieza deveras me agrada. Sempre admirei mulheres firmes, irredutíveis. Talvez eu consiga até cantarolar uma música. Como é mesmo aquele samba – vestiu uma camisa listrada e saiu por aí – . Hum, preciso ver se minhas meias estão novas e onde está minha anágua preta. Quero ter um ar meio sensual no caixão, algo como “ a sedutora morta” ou coisa que o valha.

Já tomei meu banho, vesti-me. Só falta retocar a maquiagem. Sempre fiquei bem com esta saia, mas hoje ficou melhor. O cabelo está ótimo. E meus olhos? Nunca notara que eram tão brilhantes, talvez porque eu vá perder esse brilho, não sei bem. É gozado !

Qual seria a reação dos rapazes do escritório se me vissem assim? Talvez até o chefe notasse, não seria mal tentar. Se eu pegar um táxi ainda chego a tempo. Onde estão minha bolsa e os óculos? Acho que na gaveta do quarto. É só fechar as janelas e sair.

Ah, já ia me esquecendo, preciso dar fim a um certo vidro.

(Ema Brígida- março/1970)

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DICA DE LEITURA

O escritor Robertson Frizero, autor de “Longe das Aldeias” (Dublinense), acaba de lançar o romance experimental “Merci”. Disponível na Amazon, o livro concorre ao Prêmio Kindle de Literatura.

Os colunistas são responsáveis por seu conteúdo e o texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal Making of.

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