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Para La Negra, com amor

Para La Negra, com amor

Em 09 de julho de 1935, nascia na Argentina uma das maiores cantoras do século XX. Aproveito a data para homenagear Mercedes Sosa, por seu talento e força de luta. A crônica faz parte do meu livro “As mulheres da minha vida-Crônicas”, Editora Insular, 2019.

Arte de Eduardo Cazon sobre foto

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MERCEDES

Quando cheguei à universidade nos anos 70, quase todos os países da América do Sul viviam o pesadelo da ditadura militar. Não há como esperar algo de bom de um regime que oprime, censura e mata. Mas, por vias indiretas, os anos de chumbo trouxeram um reflexo positivo, o sentimento de latinidade até então desconhecido.

A literatura, a música e outras formas de arte de resistência foram elos fundamentais . Tiramos os olhos do grande império do Norte e miramos nossos vizinhos mais próximos com fraternidade. Apesar do Brasil ser a linha fora da curva por falar português, no sul do país a língua espanhola  nos é bastante familiar. Nosso portuñol era o melhor do país. Passamos a ler Julio Cortázar no original, a ouvir e cantar as lindas canções argentinas, chilenas e uruguaias como se fossem nossas. Retribuíamos com Chico Buarque, Edu Lobo, Vandré…Viramos hermanos  na dor e na arte.

Mesmo com a penúria dos tempos de estudante eu conseguia comprar LPs (discos em vinil) de Violeta Parra, Athaualpa Yupanqui, Victor Jara, Raíces de América e, claro, da maior de todas, Mercedes Sosa.

La Negra, como era carinhosamente chamada por causa dos cabelos lisos e escuros, nasceu em San Miguel de Tucumán, um lugar humilde da Província de Tucumán , Argentina, em 9 de julho de 1935. Foi lá que a menina aprendeu a dançar e cantar música folclórica que seria a base de sua bem sucedida carreira. Tudo começou quando ela ganhou um concurso de rádio, com o pseudônimo de Gladys Osório.

Mercedes se integrou ao Movimiento del Nuevo Cancionero , corrente renovadora do folclore em contraponto à música de consumo que estava na moda. Ela escolheu cantar a história de la gente argentina, com sus alegrias y tristezas…

O marido de Mercedes, Manuel Oscar Matus, foi quem editou seu primeiro disco, “Canciones com Fundamento”. Ela se tornou conhecida do grande público, pelas mãos do cantor Jorge Cafrune, no Festival Nacional de Folclore de Cosquín, em 1965.

Eu juntava as moedas para poder comprar seus novos álbuns,  descobrindo em cada um  canções maravilhosas como Para Cantarle a mi Gente, Duerme Negrito, Solo Le pido a Diós, Alfonsina y el mar, Yo vengo a oferecer mi corazón.  Como se não bastasse ela mesma, Mercedes ainda me apresentou à Violeta Parra, a compositora chilena que criou os hinos Gracias a la Vida, Volver a los 17 e a La Carta, onde lamenta a prisão do irmão, Angel Parra, morto depois pela ditadura.

Através das canções de protesto, Mercedes tornou-se “a voz dos sem voz”. Perseguida pelo regime militar, La Negra acabou detida e revistada no palco em que se apresentava na cidade  argentina de La Plata, em 1979. No ano seguinte, partiu para o exílio e passou a viver entre Paris e Madrid. Na teoria, ela podia entrar e sair da Argentina, mas estava proibida de cantar na terra natal. A arte é uma coisa perigosa, sabem todos os regimes autoritários.

Não por acaso, Mercedes gravou Si se calla el cantor , de Horacio Guarany: ”Si se calla el cantor, calla la vida Porque la vida, la vida misma es todo un canto Si se calla el cantor, muere de espanto La esperanza, la luz y la alegría…”

Conhecida e reverenciada internacionalmente, Mercedes Sosa fez apresentações ao redor do mundo. No Brasil, sua fama cresceu a partir de 1976, ao gravar  Volver a los 17, em dueto com Milton Nascimento, de quem se tornou admiradora e amiga. Os laços com a música brasileira fortaleceram-se com as participações especiais em discos de Caetano Veloso, Chico Buarque, Beth Carvalho, Fagner e Daniela Mercury. Gravou músicas brasileiras como San Vicente , de Milton Nascimento e Fernando Brandt, e a linda versão para  Cio da Terra,  de Milton e Chico Buarque.

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Meus encontros com Mercedes

Durante o período de exílio, Mercedes fez vários shows no Brasil. Não recordo a data exata, mas meu primeiro foi no auditório da reitoria da UFRGS-Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Que emoção vê-la ao vivo! Lembro até hoje do arrepio ao ouvi-la dizer – amigos do Brasil, trago em minha voz a luta pela liberdade”.

A maior lição que aprendi com Mercedes aconteceu no segundo show dela que tive o privilégio de ver. O Gigantinho, Ginásio do Esporte Clube Internacional, em Porto Alegre, não chegava a estar lotado. Era 1980 e já começara a distensão política no Brasil. Estávamos sentados nas duras e frias arquibancadas do ginásio – mas que importância tinha isso, se Mercedes estava cantando? De repente, ouvimos um estrondo! Uma bomba explodira na arquibancada, não muito longe de onde eu estava. Armou-se um burburinho, gritos, início de tumulto.

Os músicos e Mercedes foram retirados do palco rapidamente. Eu, com o coração na boca, não sabia se descia os degraus correndo, se partia, se ficava. Poucos minutos depois, La Negra volta ao palco e ordena com aquela voz maravilhosa que Deus lhe deu: – acendam as luzes porque os lobos se escondem no escuro. Fez o show até o fim, voz firme, cabeça erguida. O público, fazendo coro, admirando-a ainda mais.

Mercedes ficou longe da terra natal até 1982. Ao voltar foi recebida com a reverência merecida. Ela continuou se apresentando até bem perto de sua morte, em 04 de outubro de 2009, aos 74 anos. Tive a chance de vê-la mais uma vez, em 2007, em Florianópolis. Doente, a voz já não tinha a mesma potência, mas o calor humano, a força, a emoção estavam lá intactos. No meio da plateia, um homem gritava “ Mercedes, nós te amamos”. Depois de várias vezes, ela perguntou o que ele estava dizendo.

Eu estava sentada nas primeiras fileiras, mas fiquei com vergonha de traduzir alto para ela o que o homem gritava. Peço perdão, Mercedes, eu deveria ter dito que concordávamos com ele – “nós te amamos, Negra.

Obrigada por tudo”.

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Palavra de Mercedes

“A cultura é a única coisa que pode salvar um povo, porque a cultura ermite ver a miséria e combatê-la. A cultura permite distinguir o que precisa ser mudado e o que se deve deixar assim, como a bondade das pessoas, o partilhar uma empanada, um vinho…”

Os colunistas são responsáveis por seu conteúdo e o texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal Making of.

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