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O cinema e as memórias da ditadura no Chile

Cena de "Morte a Pinochet" (Foto: Divulgação)

Uma das coisas que me mais marcaram em recente viagem ao Chile foi o quanto o país preserva a memória daquela que foi a mais sangrenta e longa ditadura da América Latina. Entre 1973, com o golpe que derrubou o presidente Salvador Allende, até 1990, sob o comando do general Augusto Pinochet, foram assassinadas mais de três mil pessoas, mais de quarenta mil foram presas e torturadas, enquanto milhares se exilaram para não ter o mesmo destino. Em 2023, completa-se cinquenta anos do início do horror, mas as marcas continuam indeléveis. Diferentemente de nosotros, os chilenos não varreram o episódio para baixo do tapete.

Inaugurado em 2010, o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, em Santiago do Chile – projetado por arquitetos brasileiros vencedores do concurso – reúne fotos, vídeos e documentos distribuídos em três andares com salas temáticas como “Demanda da Verdade e Justiça”, “Luta pela Liberdade”,  “Retorno à Esperança”,  “Repressão e Tortura” e “Nunca Mais”.

Andando pelo pequeno bairro Paris-Londres, encontrei o prédio amarelo da rua Londres, 38, onde jovens estudantes foram presos, torturados e mortos durante o regime militar. O belo casarão foi transformado em um memorial às vítimas e na calçada cada uma ganhou uma placa com seu nome e idade. É impactante caminhar sobre elas e ler que  elas tinham apenas quinze, vinte, vinte e dois anos quando foram assassinados.

As memórias desse período têm outro guardião: o cinema . São vários  títulos retratando aspectos dos anos de chumbo chilenos, um registro importante para mostrar a História às novas gerações e para impedir que algo assim se repita. Como já disse o cineasta brasileiro Walter Salles : o papel do cinema é gerar uma memória de nós mesmos, um retrato de uma sociedade em um dado momento. O cinema chileno soube cumprir esse papel. Selecionei alguns títulos disponíveis nas plataformas. Espero que gostem.

 

Morte a Pinochet – Um ato de amor – direção: Juan Ignacio Sabatini- 2023

Esse é o filme mais recente e que inspirou o tema desta edição. Não é uma história de vitória, mas de luta. Em 1986, enquanto a democracia retornava a outros países da Al, a ditadura militar ainda perdurava no Chile. Integrantes da Frente Patriótica Manuel Rodríguez arma um plano para eliminar o ditador Augusto Pinochet na tentativa de livrar o país do autoritarismo. O ataque  realmente aconteceu, em 7 de setembro de 1986, mas  quem conhece minimamente a história chilena sabe que não deu certo.  Augusto Pinochet só morreria bem mais tarde, de morte natural, aos 91 anos! Se fosse um filme do Tarantino o final poderia ser outro. Mas, vale pelo clima de suspense e pela boa atuação dos atores, incluindo Daniela Ramirez que interpretou a escritora Isabel Allende em “A história íntima de Isabel Allende”. Daniela vive a comandante do atentado, Cecília Magni, que usava o codinome Tamara. Foi um caso raro de mulher liderando uma operação.

O filme está para alugar no Prime, YouTube, Apple TV e Google Play.

Veja o trailer:

 

Post Mortem – direção: Pablo Larraín – 2022 – Prime Vídeo

A história se passa no Chile de 1973. Mario é um homem solitário, funcionário do necrotério, apaixonado por sua vizinha Nancy , uma dançarina de cabaré. Quando ela desaparece misteriosamente em 11 de setembro, ele passa a procurá-la em meios aos corpos das vítimas do golpe de Augusto Pinochet. O protagonista é Alfredo Castro (foto), mesmo ator de Larraín em “ Tony Manero”, seu filme anterior. “Post Mortem” recebeu o prêmio de Melhor Filme do Festival de Cinema Latino de Los Angeles (LALIFF)

 

Cachorros – direção: Marcela Said – 2017 – Reserva Imovision (Prime)

Sinopse oficial: Mariana faz parte da elite chilena. Desprezada por seu pai e seu marido por não conseguir engravidar, ela começa a sentir-se atraída por Juan, seu professor de equitação, um ex coronel suspeito de crimes contra os direitos humanos durante a ditadura. O relacionamento dos dois entra em colapso quando Mariana descobre que o passado obscuro de Juan está relacionado ao passado de sua família. Alfredo Castro parece estar para o cinema chileno como Ricardo Darín está para o cinema argentino, pois está também no elenco de “ Cachorros”.

 

Chile, 1976 – direção: Manuela Martelli – 2023 – Netflix

O ano de 1976 foi um dos mais sangrentos da ditadura do general Augusto Pinochet. Na história, Carmen é uma dona de casa que vive a placidez da vida burguesa de classe média. Um dia ela recebe o apelo do padre da família para que esconda, por piedade, um refugiado político em sua casa de praia.

 

Lemebel – Um artista contra a ditadura chilena – direção: Joanna Reposi Garbaldi – 2019 – Prime Vídeo – Mubi – Google Play

O documentário conta a  história do artista chileno Pedro Lemebel, grande nome do movimento Queer na América Latina, que desafiou a sociedade conservadora durante a ditadura de Augusto Pinochet no final dos anos 80.

 

Massacre no estádio: Vida e morte de Victor Jara – documentário – 2019 – Netflix

O quarto episódio da série ReMastered conta a história do cantor e compositor chileno Victor Jara. Autor de belíssimas músicas de protestos, Jara foi torturado e morto com mais de quarenta tiros, além de ter tido as mãos esmagadas, poucos dias após a instalação da ditadura de Pinochet. Isso aconteceu no Estádio Nacional do Chile, onde outras cerca de quatrocentas pessoas foram executadas pelos militares. O filme traz o depoimento de um oficial apontado como executor, mas ele nega e passa inclusive pelo polígrafo. Jara deixou canções maravilhosas, muitas gravadas por Mercedes Sosa, como “ Te recuerdo Amanda”, “ Duerme negrito” e “Plegaria a um labrador”. Mas, escolhi uma menos conhecida para postar porque mostra bem o que o chileno pensava sobre a arte como instrumento de luta pela igualdade social. Em “Manifesto” ele cita Violeta (Parra), a compositora chilena de “Gracias a la vida” que também fez parte, como ele, do movimento movimento estético-musical-político chamado de Nova Canção Chilena, do qual fizeram parte também Rolando Alarcón, e Patricio Manns, além dos grupos Inti-Ilimani e Quilapayún.

Victor escreveu em “Manifiesto”:

Yo no canto por cantar
Ni por tener buena voz
Canto porque la guitarra
Tiene sentido y razón

Tiene corazón de tierra
Y alas de palomita
Es como el agua bendita
Santigua glorias y penas

Aquí se encajó mi canto
Como dijera Violeta
Guitarra trabajadora
Con olor a primavera

Que no es guitarra de ricos
Ni cosa que se parezca
Mi canto es de los andamios
Para alcanzar las estrellas
Que el canto tiene sentido
Cuando palpita en las venas
Del que morirá cantando
Las verdades verdaderas
No las lisonjas fugaces
Ni las famas extranjeras
Si no el canto de una lonja
Hasta el fondo de la tierra

Ahí donde llega todo
Y donde todo comienza
Canto que ha sido valiente
Siempre será canción nueva

Ouça aqui.

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SÉRIE

Colônia Dignidade: Uma seita nazista no Chile – 06 episódios – Netflix

Essa série documental é uma coprodução Chile-Alemanha e acompanha a tenebrosa história por trás da Colônia Dignidade, uma comunidade alemã isolada próxima a Cordilheira dos Andes. Comandada por Paul Schafer, a colônia foi palco de diversas atrocidades como violência sexual contra menores de idade e tortura e homicídio de ativistas políticos. Schafer foi aliado da ditadura de Pinochet no Chile e auxiliou várias atividades ilegais do governo militar. A comunidade também servia de espaço para uma seita nazista.

 

 

EXTRA PAUTA

* A propósito do diretor chileno Pablo Larraín: ele anda com a bola cheia em Hollywood e está se especializando em cinebiografias. Depois de Spencer (2021), sobre a princesa Diana, e Jackie (2016), sobre Jackeline Onassis,  Larraín se prepara para dirigir a história da diva Maria Callas, ironicamente trocada por Aristóles Onassis pela viúva de John Kennedy. La Divina, como a soprano era chamada, será interpretada por Angelina Jolie. A ver.

* Falando em cinebiografia, Meu nome é Gal, contando a trajetória da grande cantora brasileira, estreia em setembro próximo. Gal faria 78 anos no mesmo mês. Sua intérprete é Sophie Charlotte. A diretora  do filme,Dandara Ferreira, também atua no filme no papel de Maria Bethânia.

* A Universal não consegue concretizar o remake de Scarface pretendido desde 2017, com roteiro dos aclamados irmãos Cohen. Três diretores já desistiram ao longo do caminho. O último foi  Luca Guadgnino (Me chame pelo seu nome). O ator Diego Luna também abandonou o elenco. O traficante cubano ia ser mexicano para adequar o personagem a Diego, mas ele alegou compromisso com a série “Narcos” e que os papéis eram muito parecidos. Precisa ser bem corajoso mesmo para aceitar o papel de Tony Montana, pois os fãs do filme acham uma heresia alguém no lugar de Al Pacino. A produção nem saiu do papel e as críticas já rolam nas redes sociais.

*Na última terça-feira (13) o cinema perdeu  Treat Williams. O ator tinha 71 anos e morreu num acidente de moto. Ele fez filmes importantes como “Era uma vez na América”, de Sérgio Leone” e “Nas profundezas do mar sem fim”, ao lado de Michelle Pfeiffer, mas seu papel mais lembrado é em “Hair” (foto), adaptação do icônico musical da Broadway. Treat era conhecido também pelos fãs da série “ Everhood”. Descanse em paz.

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THE END

 

 

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