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Uma cama de papelão

Uma cama de papelão

Juro que me esforço para dar à nossa conversa dominical um tom leve e divertido. Mas às vezes me constranjo de falar apenas sobre amenidades, enquanto há crianças na rua, dormindo debaixo de viadutos e pegando comida no lixo. Sei que não é novidade, mas com a pandemia e a falta de políticas públicas a miséria recrudesceu.  Perdoem-me, mas hoje vou falar sério.

Vem cá, o que houve com todas aquelas frases bonitas do tipo “as crianças são o futuro do país”, “as crianças são a esperança do mundo”? Esvaziaram-se como balões furados. Esquecemos nosso dever de “proteger o que cresce”, como diz o poema de Tejada Gomez. Desviamos o olhar do “menino desagradável, sem dúvida inoportuno, de cara redonda e suja, que fica nos faróis” (*).

E se alguém quiser fugir dessa visão incômoda, já vou avisando: não há para onde correr. A não ser que você se enclausure num desses condomínios cercados de muros altos e não olhe pela janela de seu carro quando estiver atravessando as ruas da cidade. De qualquer cidade.

No Brasil, só em uma bolha cor-de-rosa você consegue não tropeçar em uma das nove milhões de crianças em situação domiciliar de extrema pobreza.

Mas a tragédia da infância abandonada não se restringe a nós ou aos vizinhos da América Latina. Ela se desloca pelos continentes, atravessa oceanos, morre afogada ou vai passar fome em outro lugar, amontoada nas tendas dos campos de refugiados, como no Vale do Bekaa, no Líbano. É preciso entender que metade dos refugiados do mundo são crianças.


O olhar mais triste

Uma delas é Radwan Hassan, o menino sírio que ficou surdo aos quatro anos durante o bombardeio de sua cidade. Ele foi minha inspiração para o voluntariado de apoio a refugiados e imigrantes. Na época, conseguimos um aparelho de surdez e sessões com fonoaudióloga, além de ajuda para a mãe e irmãos com quem ele vivia no campo libanês Bour El Barajneh. Só conheci o menino, sempre sorridente, por fotos. Quando Radwan estava evoluindo para poder frequentar a escola, a mãe resolveu voltar para a Síria com os filhos. Acho que, em desespero, imaginou que poderia ter uma vida melhor no meio da guerra do que numa tenda num país estranho. Nem tive tempo de mandar para Beirute, a camiseta da seleção brasileira que comprei para ele.

Na última imagem que vi de Radwan, ele já estava adolescendo e arava a terra seca no país natal. O sorriso dera lugar ao olhar mais triste que vi na vida. Aquele olhar me assombra até hoje. Como deve ser o do garoto de rua do poema: “Eu sou esse menino repulsivo que improvisa uma cama com papelões velhos e espera, seguro, que você venha a lhe fazer companhia” (*). Mas ele está só. A indiferença venceu. (Brígida De Poli)

(*) Trecho do poema “Menino Velho”, do cubano Reinaldo Arenas

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MICROCONTO DE DOMINGO

Desafio apresentado pelo escritor e professor Robertson Frizero para o coletivo @literaturaminima: um miniconto sobre algum traço de brasilidade. Escolhi a onda dos testes de ancestralidade e o “orgulho de ser europeu” no país com a maior população negra do mundo fora da África.

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